A interessante questão levantada por um artigo publicado no Huffington Post "Why is Sheet Music Still Considered Necessary for Music Education?" fez-me regressar a um assunto que algumas vezes debati com outros músicos e algumas outras, apenas comigo próprio: a da necessidade de saber ler música para ser... músico.
A primeira vez que debati essa questão com alguém foi em meados dos anos 70 com um amigo, como eu em início de carreira, que defendia que optaria por nunca estudar formalmente música dado que , em sua opinião, retiraria a "espontaneidade" ao acto de tocar. O argumento fez ressoar em mim dúvidas que até então não existiam. À partida e até aquela data sempre tinha tido interiorizado que para evoluir em qualquer área é necessário estudo. Mas o argumento do meu amigo deixou-me a pensar...
Mais para a frente encontrei outros músicos que - uns orgulhosamente, outros arrogantemente, alguns embaraçadamente - me diziam não saber ler uma partitura. Não só isso parecia não os afectar de todo como, pelo contrário, a música que faziam era muito mais viva, descontraída e aparentemente melhor do que a feita por muitas das orquestras ou grupos de "leitores" que existiam na altura, na cidade. Mas a comparação que sempre pairou na minha mente - a literacia musical e a literacia "literária" (saber ler e escrever) - fez com que sempre achasse impensável não aprender a ler música. Pela minha parte e para além dos fundamentos teóricos que aprendi, devo muito á paciência e simpatia do pianista e maestro Carlos Machado por me ter ensinado os mil pormenores de que é feita a leitura musical "em tempo real" ou seja, não no sossego do nosso quarto, livro de solfejo á frente, mas no palco, com o instrumento, tocando no meio de uma orquestra uma música mais rápida do que os dedos conseguem acompanhar enquanto, por exemplo, um ilusionista faz sair pombas de um lenço de seda. Foram essas as minhas primeiras tentativas (a maior parte das vezes frustradas) de "ler" música a sério.
Mas voltando ao artigo do Huffington Post e á frase cheia de significado algures transcrita no artigo, uma citação de Elvis Presley : "I don't know anything about music. In my line you don't have to."
A forma como Elvis se coloca no estatuto de entertainer ( e não de músico) revela, a meu ver a lucidez com que ele se via a si próprio, ao que fazia e ao seu estatuto de estrela.. Como entertainer o conhecimento musical não é necessário. É, talvez, até contraproducente... e vem á lembrança a anedota dos músicos de rock e de jazz, dos 3 acordes e das 3000 pessoas... Óbvia mente que ao longo da sua carreira, Elvis necessitou de músicos, e teve-os, dos melhores que o dinheiro podia pagar. Mas (tirando o meu amigo Mário Delgado) quem sabe quem foram Scotty Moore, James Burton, Ronnie Tutt ou John Wilkinson ? Esses, de que dificilmente ouvimos falar, tiveram de reunir ao longo de muitos anos um enorme know-how que fez deles primeiramente "músicos" e só mais remotamente, "entertainers".
Desvalorizar a literacia musical colocando a questão da sua obsolescência é uma posição que me parece refletir várias falácias ou mitos muito queridos do show-business ou da sociedade do espectáculo em que (sobre)vivemos .
1º) de que não há bastidores. O show-business quer fazer-nos crer de que tudo o que vemos nos palcos especialmente os de TV é verdade. Abre-se a boca e cantamos maravilhosamente. Pegamos num instrumento e saem melodias fantásticas. Não há técnica, não há dificuldades, não há trabalho de médio e longo prazo. Mito altamente apoiado nos concursos de talentos onde, a nossa vizinha, de um momento para o outro, se transforma em ídolo nacional.
2º) TUDO é entretenimento .Tal qual descrito por Debord ainda nos anos 60, vivemos numa sociedade global em que tudo é espectáculo (concorrentes de reality-show em cenário de guerra!!!) em que todos somos entertainers. As formas de comunicação de que dispomos, que usamos e de que abusamos colam-nos à pele, quer queiramos ou não, a missão de nos entretermos uns aos outros, situação da qual o facebook é o paradigma. Entretenhamo-nos uns aos outros como ele nos entreteve, poderá ser um slogan de um partido ou religião à escolha do freguês.
3º) A desvalorização do papel das Artes e Humanidades numa sociedade global regulada pela Finança. Para quê estudar Filosofia (ou Pintura, ou Música, ou Linguística, ou...) se isso não dá dinheiro? Ah, bom...estuda Música? e já apareceu na televisão? e a sua página quantos likes têm?
E a sociedade recompensa amplamente ou pune sem perdão o sucesso desse entretenimento ou a falta dele: as grandes fortunas para os grandes entertainers, um grande número de "likes" para os pequenos entertainers, a pena capital do esquecimento para os que não souberam conservar-se em palco.
Se com os concursos de TV todos podemos ser estrelas da canção pop, do canto lírico ou DJ de sucesso, ainda mais facilmente podemos "ser" músicos ou ser percebidos como tal. O que é minimamente recomendado? apenas que na foto do perfil de facebook apareças de instrumento...e já agora que haja alguma credibilidade no "look", apesar da incoerência no look também estar trendy. Como diz o autor do artigo, "Anyone in their garage could bang out a few power chords and claim punk status" . E isso não é apenas verdade para os "power chords" ou "punk status".....outros "chords" e outros "status" são reclamados de formas tão superficiais e igualmente vazias de conteúdo. O que está em causa é precisamente a definição de " músico", definição que há muito deixou de ser validada por uma série de rituais de passagem nos quais estava incluído saber "ler" música.
As visões populistas e anti-intelectuais da sociedade invadem muitos dos aspectos da nossa viva actual, Educação incluída. Este anti-intelectualismo é característico de todas as sociedades autoritárias das quais aquela de que fazemos parte vai manifestando cada vez mais sinais e a literacia musical vai claramente contra essa corrente.
O que dizer da importância de ler ou escrever música quando canções cada vez mais simples (e más) geram retorno (público/downloads/mediatismo) cada vez maior número ?
Ler, escrever e improvisar música são, em minha opinião, as três formas de conquistar uma liberdade musical muito mais vasta do que a conseguida por apenas uma dessas capacidades. Reduzir a importância de qualquer delas é reduzir a liberdade.
Para além da ferramenta técnica que representa prefiro encarar a capacidade de ler e escrever música como um instrumento de liberdade, uma ferramenta contra a corrente da sociedade-espectáculo em que (há demasiado tempo) vivemos, uma capacidade que, tal como saber ler o jornal ou escrever uma carta, ajuda a criar em cada um de nós um espaço íntimo de liberdade total e não-negocíavel onde cada um pode sonhar, criar, compôr, ser mais verdadeiramente ele próprio.
A primeira vez que debati essa questão com alguém foi em meados dos anos 70 com um amigo, como eu em início de carreira, que defendia que optaria por nunca estudar formalmente música dado que , em sua opinião, retiraria a "espontaneidade" ao acto de tocar. O argumento fez ressoar em mim dúvidas que até então não existiam. À partida e até aquela data sempre tinha tido interiorizado que para evoluir em qualquer área é necessário estudo. Mas o argumento do meu amigo deixou-me a pensar...
Mais para a frente encontrei outros músicos que - uns orgulhosamente, outros arrogantemente, alguns embaraçadamente - me diziam não saber ler uma partitura. Não só isso parecia não os afectar de todo como, pelo contrário, a música que faziam era muito mais viva, descontraída e aparentemente melhor do que a feita por muitas das orquestras ou grupos de "leitores" que existiam na altura, na cidade. Mas a comparação que sempre pairou na minha mente - a literacia musical e a literacia "literária" (saber ler e escrever) - fez com que sempre achasse impensável não aprender a ler música. Pela minha parte e para além dos fundamentos teóricos que aprendi, devo muito á paciência e simpatia do pianista e maestro Carlos Machado por me ter ensinado os mil pormenores de que é feita a leitura musical "em tempo real" ou seja, não no sossego do nosso quarto, livro de solfejo á frente, mas no palco, com o instrumento, tocando no meio de uma orquestra uma música mais rápida do que os dedos conseguem acompanhar enquanto, por exemplo, um ilusionista faz sair pombas de um lenço de seda. Foram essas as minhas primeiras tentativas (a maior parte das vezes frustradas) de "ler" música a sério.
Mas voltando ao artigo do Huffington Post e á frase cheia de significado algures transcrita no artigo, uma citação de Elvis Presley : "I don't know anything about music. In my line you don't have to."
A forma como Elvis se coloca no estatuto de entertainer ( e não de músico) revela, a meu ver a lucidez com que ele se via a si próprio, ao que fazia e ao seu estatuto de estrela.. Como entertainer o conhecimento musical não é necessário. É, talvez, até contraproducente... e vem á lembrança a anedota dos músicos de rock e de jazz, dos 3 acordes e das 3000 pessoas... Óbvia mente que ao longo da sua carreira, Elvis necessitou de músicos, e teve-os, dos melhores que o dinheiro podia pagar. Mas (tirando o meu amigo Mário Delgado) quem sabe quem foram Scotty Moore, James Burton, Ronnie Tutt ou John Wilkinson ? Esses, de que dificilmente ouvimos falar, tiveram de reunir ao longo de muitos anos um enorme know-how que fez deles primeiramente "músicos" e só mais remotamente, "entertainers".
Desvalorizar a literacia musical colocando a questão da sua obsolescência é uma posição que me parece refletir várias falácias ou mitos muito queridos do show-business ou da sociedade do espectáculo em que (sobre)vivemos .
1º) de que não há bastidores. O show-business quer fazer-nos crer de que tudo o que vemos nos palcos especialmente os de TV é verdade. Abre-se a boca e cantamos maravilhosamente. Pegamos num instrumento e saem melodias fantásticas. Não há técnica, não há dificuldades, não há trabalho de médio e longo prazo. Mito altamente apoiado nos concursos de talentos onde, a nossa vizinha, de um momento para o outro, se transforma em ídolo nacional.
2º) TUDO é entretenimento .Tal qual descrito por Debord ainda nos anos 60, vivemos numa sociedade global em que tudo é espectáculo (concorrentes de reality-show em cenário de guerra!!!) em que todos somos entertainers. As formas de comunicação de que dispomos, que usamos e de que abusamos colam-nos à pele, quer queiramos ou não, a missão de nos entretermos uns aos outros, situação da qual o facebook é o paradigma. Entretenhamo-nos uns aos outros como ele nos entreteve, poderá ser um slogan de um partido ou religião à escolha do freguês.
3º) A desvalorização do papel das Artes e Humanidades numa sociedade global regulada pela Finança. Para quê estudar Filosofia (ou Pintura, ou Música, ou Linguística, ou...) se isso não dá dinheiro? Ah, bom...estuda Música? e já apareceu na televisão? e a sua página quantos likes têm?
E a sociedade recompensa amplamente ou pune sem perdão o sucesso desse entretenimento ou a falta dele: as grandes fortunas para os grandes entertainers, um grande número de "likes" para os pequenos entertainers, a pena capital do esquecimento para os que não souberam conservar-se em palco.
Se com os concursos de TV todos podemos ser estrelas da canção pop, do canto lírico ou DJ de sucesso, ainda mais facilmente podemos "ser" músicos ou ser percebidos como tal. O que é minimamente recomendado? apenas que na foto do perfil de facebook apareças de instrumento...e já agora que haja alguma credibilidade no "look", apesar da incoerência no look também estar trendy. Como diz o autor do artigo, "Anyone in their garage could bang out a few power chords and claim punk status" . E isso não é apenas verdade para os "power chords" ou "punk status".....outros "chords" e outros "status" são reclamados de formas tão superficiais e igualmente vazias de conteúdo. O que está em causa é precisamente a definição de " músico", definição que há muito deixou de ser validada por uma série de rituais de passagem nos quais estava incluído saber "ler" música.
As visões populistas e anti-intelectuais da sociedade invadem muitos dos aspectos da nossa viva actual, Educação incluída. Este anti-intelectualismo é característico de todas as sociedades autoritárias das quais aquela de que fazemos parte vai manifestando cada vez mais sinais e a literacia musical vai claramente contra essa corrente.
O que dizer da importância de ler ou escrever música quando canções cada vez mais simples (e más) geram retorno (público/downloads/mediatismo) cada vez maior número ?
Ler, escrever e improvisar música são, em minha opinião, as três formas de conquistar uma liberdade musical muito mais vasta do que a conseguida por apenas uma dessas capacidades. Reduzir a importância de qualquer delas é reduzir a liberdade.
Para além da ferramenta técnica que representa prefiro encarar a capacidade de ler e escrever música como um instrumento de liberdade, uma ferramenta contra a corrente da sociedade-espectáculo em que (há demasiado tempo) vivemos, uma capacidade que, tal como saber ler o jornal ou escrever uma carta, ajuda a criar em cada um de nós um espaço íntimo de liberdade total e não-negocíavel onde cada um pode sonhar, criar, compôr, ser mais verdadeiramente ele próprio.
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