Improvisação e narrativa

Para além de um dos mais interessantes e criativos pianistas da nova geração, Vijay Iyer é um estudioso da performance improvisada. Alguns dos seus temas preferidos são a colaboração na improvisação,a temporalidade, a corporização da experiência musical ou a narrativa na improvisação.
Muito interessantes (para quem gosta destes assuntos) os seus artigos "Improvisation,Temporality and Embodied Experience." Journal of Consciousness Studies 11 (2004) ou "Sangha: Collaborative Improvisations on Community." (2006) Critical Studies in Improvisation / Études critiques en improvisation 1(3).

Achei especialmente interessante o seu artigo (2004) "Exploding the Narrative in Jazz Improvisation" (The New Jazz Studies, ed. Columbia University Press)onde, partindo de uma conversa entre Coltrane e os seus colegas durante a gravação do tema "Giant Steps" no disco "The Heavyweight Champion", Vijay elabora sobre a narrativa no solo improvisado, sobre verdade/mentira e sobre outras questões éticas e culturais presentes no solo improvisado.
A conversa foi transcrita por Vijay Iyer e Steve Coleman.
A tradução do original é do autor deste blog.



"Durante a gravação de Giant Steps ocorre um momento revelador e de descomprometido á-vontade entre os músicos presentes no estúdio.
Enquanto ensaiavam o tema especialmente difícil com que foram inesperadamente confrontados, ouve-se Coltrane dizer aos seus esforçados colegas:
I don’t think I’m gonna improve this, you know . . . I ain’t goin be sayin nothin, (I goin do) tryin just, makin the changes, I ain’t goin be, tellin no story. . . Like . . . tellin them black stories.”
Entre um murmúrio indistinto de assentimento dos outros membros da banda, um deles diz:
Shoot. Really, you make the changes, that’ll tell ’em a story.” Surpreendido por esta ideia, Coltrane responde: “You think the changes’re the story!”
Sobrepondo-se á sua voz outro membro da banda diz: “ that’ll change all the stories ” . Rindo-se Coltrane responde: “I don’t want to tell no lies (on ’em).”
Todo o grupo ri e o 2º colega acrescenta :“(The) changes themselves is some kind of story (man I’m tellin you).”
Estes poucos segundos de troca de palavras poderiam alimentar um simpósio: esta conversa antífonal, em vários registos, rica de elementos culturais sugere uma definição de como as histórias musicais podem ser contadas.
Making the changes”—ou seja, negociar o labirinto harmónico que constitui a estrutura harmónica do tema - constitui apenas uma faceta da construção em tempo real de um texto improvisado neste idioma (jazz). Uma lista de outros ingredientes convencionais da linguagem incluem a produção de um "momentum" rítmico contínuo ("swing"), a projecção de um timbre instrumental rico e pessoal, a construção de fraseado melódico original bem como a estruturação destas frases num todo convincente.
Da preocupação em não estar contando a história certa (" I ain’t goin be, tellin no story") é fácil supor que Coltrane estaria a pensar nestes parâmetros, tentando criar um solo "coerente", o arco narrativo de que Gunther Schuller fala . Contudo a sua referência ás preocupações de relacionamento cultural (“tellin’ them black stories”) a natureza académica (étude-like) daquela complexa estrutura harmónica inclusivamente projectando-se para além da sua noção de coerência de composição.

Com estas palavras Coltrane parece querer produzir um statement musical em que a comunidade possa ouvir refletida toda a sua própria multiplicidade narrativa. Com efeito, a sua incessante procura desse ideal está documentada ao longo de dúzias de takes. Para além disso, a sua é uma busca pela veracidade: “I don’t want to tell no lies on ’em.” Poderiamos refletir sobre que notas, acordes e ritmos são "a verdade" e poderemos ser tentados a interpretar o riso que esse comentário provocou como uma manifestação de quanto absurda é esta ideia.
Mas , de facto, esta ideia é de uso corrente entre músicos e a explosão de riso talvez tenha um significado de concordância.

Há poucas semanas atrás ouvi um colega músico criticar um outro elemnto da banda por "mentir" em palco. De acordo com esse meu colega o músico estava a tocar o que ele julgava que o leader gostaria de ouvir em vez de produzir um solo genuinamente pessoal. Para Coltrane "mentir" musicalmente poderia querer dizer tocar de um modo excessivamente consciente, premeditado ou construido de uma forma que soasse a falso aos seus ouvidos.

Este comentário sugere que Coltrane esforçava-se por criar uma representação autêntica da sua comunidade ao contar a sua história com toda a veracidade possível.

Esta busca de veracidade tem uma larga implicação com a política de autenticidade e o seu papel da narrativa na música negra. Há uma clara relação entre "contar a sua história" e "ser verdadeiro" (“ ")
O meu interesse nesta conversa entre Coltrane e os seus colegas (aquando da gravação de "Giant Steps") centra-se especialmente na observação de um dos seu sidemen
Really, you make the changes, that’ll tell ’em a story” ("a sério, se tocares a progressão harmónica estás a contar-lhes uma história")

Talvez o colega de Trane queira posicionar a narrativa que o seu leader procura não só ao nível do imperativo filosófico colocado "na música" mas também no acto de realizar a progressão harmónica momento-a-momento.

O facto de Coltrane se esforçar por manter o seu equilíbrio musical perante esta difícil progressão é eloquente e rica de significado simbólico.
Aquilo que nos é dado ouvir resulta de muito esforço, tempo e trabalho (com todas as resonâncias que esta palavra possa ter).

Esta noção altera efectivamente o ponto de vista. Implica uma alteração de uma enfase assente numa noção top-down de coerência narrativa para uma visão bottom-up da narrativa que emerge de pequenos actos laboriosos dos quais se alimenta a actividade musical.

E realçando estes factos e os rigores que eles pressupõe esse comentário pode ser entendido como uma celebração de um atletismo musical presente na performance musical negra(ou talvez a celebração dos valores performativos presente num atletismo musical negro)

Um improvisador está envolvido numa forma de actividade física altamente disciplinada da qual só ouvimos o resultado sónico.
Se admitirmos este facto, seremos levados a considerar as implicações narrativas deste trabalho físico como música. Certamente a disciplina deste processo corporalizado nos contará "uma qualquer espécie de história"
Vijay Iyer

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