09.02.2011 Entrevista de Cristina Fernandes
A compositora fotografada por Miguel Manso
Vê a arte como aproximação ao Absoluto e, como nem tudo é possível fixar numa partitura, defende a espontaneidade do intérprete. Figura maior da composição contemporânea, Sofia Gubaidulina, que em 2011 completa 80 anos, está pela primeira vez em Portugal e diz sentir-se fisicamente mal quando ouve música ligeira (mesmo quando é boa).
Quando o violinista Gidon Kremer estreou em 1981 o Concerto Offertorium, de Sofia Gubaidulina, o mundo ocidental ficou deslumbrado com a criatividade e a espiritualidade da música compositora russa, que havia de se afirmar nas décadas seguintes como uma figura maior da criação contemporânea. Com a progressiva abertura do regime soviético na década de 1980 e a mudança para a Alemanha da compositora em 1991, fomos descobrindo pouco a pouco uma obra fascinante e sempre variada, onde se cruzam heranças eslavas, tártaras, judaicas e ortodoxas russas, a influência da música electrónica e das técnicas de improvisação, instrumentações fora do comum ou a paixão por Bach e Webern.
"A vida reduz o homem a tantas peças que não conheço outra missão mais séria do que ajudar através da música a reconstituir a sua integridade espiritual." Esta é uma das frases recorrentes de Sofia Gubaidulina, que vê a arte como forma de aproximação ao Absoluto. A compositora cumpre 80 anos em 2011 e encontra-se pela primeira vez em Portugal no âmbito de um ciclo A Hora da Alma, programado pelo CCB, com direcção artística do pianista Filipe Pinto-Ribeiro. No dia 5 ouviu-se uma memorável interpretação do Cântico do Sol de S. Francisco de Assis pelo Coro da Rádio da Letónia e pelo violoncelista David Geringas, e hoje, às 21h, o Ensemble Schostakovich apresenta um programa com obras de Webern (Seis Bagatelas op. 9) e Schostakovich (Quinteto com Piano op. 57) e obras de câmara de Sofia Gubaidulina como Reflections on the theme B.A.C.H., Dancer on a tightrope e À Beira do Abismo (com a compositora tocando aquafone). No sábado, a compositora conversou com o P2 - contando com a colaboração de Svetlana Poliakova como intérprete, já que preferiu expressar-se em russo - sobre o seu percurso, a sua obra e a sua maneira de ver a música e o mundo. Com uma grande generosidade, relembrou memórias de infância e a sua preocupação com uma humanidade que perdeu a capacidade de concentração em formas de arte mais profundas, preferindo a fugacidade superficial do entretenimento.
Que recordações musicais guarda da sua infância?
A primeira impressão e a mais forte não foi um concerto ou um evento, mas a vinda para casa de um piano de cauda. O facto de ser um piano de cauda e não vertical foi muito importante, pois assim podia ter acesso não só ao teclado, mas também às cordas. Essa aproximação ao instrumento constituía um momento de grande teatralidade. Não era apenas um novo instrumento que chegava a casa, era também todo o ambiente do concerto. Na altura eu tinha cinco anos e a minha irmã oito, ela já estudava piano e assim podíamos fazer música em conjunto. A minha irmã accionava os pedais e eu fazia sons com as cordas. A maior excitação foi a possibilidade da própria criação, poder ser eu própria a criar um quadro musical. Isto permaneceu toda a vida.
A criação foi sempre para si mais importante do que a interpretação?
O primeiro impulso foi este. Depois é difícil dizer o que foi mais importante, pois tanto a criação como a interpretação sempre estiveram presentes. Entrei numa escola de música especial [em Kazan] e fui incentivada a ser a melhor pianista possível. Mas tinha sempre um sonho escondido, um sonho íntimo, que era o da improvisação. Entretanto tive a possibilidade de entrar na classe de um compositor profissional e prossegui a formação como compositora no Conservatório de Moscovo.
Em 1975 fundou o Ensemble Astreya dedicado à improvisação em instrumentos tradicionais. Qual a importância da música não erudita na sua formação como compositora?
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, eu não cresci no campo, mas sim numa cidade industrial, com uma vida musical formatada. As impressões que tinha da música tradicional na época tinham mais a ver com o canto do que com os instrumentos. A possibilidade de tocar e de improvisar em instrumentos não convencionais e da tradição popular só apareceu mais tarde, por ocasião da criação do grupo Astreya. Fazer música em instrumentos não convencionais foi uma tendência dos anos 80 mais ligada à improvisação do que a possíveis apresentações em concerto. As pessoas encontravam-se informalmente para tentar sentir o som e a mesma tendência ocorria em vários pontos da Europa. Verifiquei, por exemplo, que os jovens em Oslo também tinham esta prática: músicos que se juntavam para tocar o que não sabiam tocar e assim experimentar o som.Era uma forma mais livre de abordagem da criação, sem estar condicionada pelas convenções da aprendizagem formal?
Sim, mas esse gosto tem também outra explicação. Era uma reacção contra a industrialização. Se pensarmos numa orquestra e no ambiente clássico de produção musical, esta funciona como uma fábrica, é uma instituição que exige muitos meios, muito profissionalismo e cujo resultado tem de ser apresentado com grande qualidade. No entanto, é muito importante para o ser humano não esquecer que as primeiras manifestações musicais não tinham esse objectivo. O que se fazia era explorar a sonoridade e a sua natureza. A experiência do Ensemble Astreya e de outros grupos tinha a ver com a descoberta do som em si, afastando-se da forma como este era apresentado no dia-a-dia.
De que forma incorpora a improvisação nas suas obras escritas?
Nas minhas obras é muito importante o papel do intérprete e constato que muitos intérpretes têm um enorme potencial criativo. É quase um crime não deixar vir isso à superfície. Às vezes, aquilo que um intérprete consegue fazer na improvisação livre provoca sonoridades muito mais ricas do que aquelas que se podem escrever. Coloca-se aqui a questão da cultura oral e da cultura escrita. Nem tudo é passível de ser fixado na partitura. Em muitas obras procuro reanimar a espontaneidade do intérprete.
A escrita restringe a criatividade e a espontaneidade?
Quando alguém deu a notícia a um sábio egípcio sobre o aparecimento da escrita, ele respondeu: "Mas que pena, a humanidade vai começar a perder a memória." Não podemos negar os enormes benefícios trazidos pela escrita ao desenvolvimento cultural, mas também não podemos esquecer que, adquirindo a escrita, estamos a perder algo como a espontaneidade da cultura oral e a capacidade de memorização. Na cultura actual, alguém que vai fazer uma comunicação normalmente prepara-a por escrito e lê, perdendo-se o momento da comunicação espontânea. Quando a pessoa tem coragem de virar as costas à escrita e começar a comunicar oralmente, nasce um clima completamente diferente de entrega da parte de quem dá e de quem recebe. Mas também sei que a maior parte das obras da história da música ocidental nunca poderiam surgir da cultura oral. A Nona Sinfonia de Beethoven não podia aparecer sem cultura escrita. O que quero sublinhar é a importância de recuperar a experiência da pré-existência da cultura escrita.
As duas componentes estão presentes na sua obra...
É muito importante que o instrumentista que está a interpretar a parte escrita de uma das minhas obras de repente tenha a possibilidade de se destacar e começar a fazer a sua interpretação. Usei este método em algumas peças, por exemplo nos 10 Prelúdios para Violoncelo solo. Em nove peças o violoncelista toca exactamente o que está escrito, na décima tem uma melodia escrita e entre parêntesis momentos destinados à improvisação. O objectivo inicial desta obra não era o palco, mas sim a experimentação. No entanto, ela acabou por ser interpretada e gravada muitas vezes. Nalguns casos há resultados tão fantásticos que eu própria não os conseguiria escrever numa partitura. Contudo, também usa métodos muito rigorosos na sua escrita, como a proporção de ouro e a série de Fibonacci [série matemática, em que a um número é adicionado o que lhe é imediatamente anterior - 1,1,2,3,5,8, até ao infinito].
O uso da série de Fibonacci é muito tortuoso, exige muito tempo. Como sou muito espontânea, trata-se de uma regra que imponho a mim própria, mas o processo é demorado e difícil. Às vezes dá bons resultados, outras não funciona, outras não há tempo, é algo que continua a ser uma experiência.
Que música da Europa Ocidental chegava à URSS antes da Perestroika?
Boulez, Stockhausen... os mais importantes chegavam sempre, normalmente através de convidados do Ocidente que partilhavam partituras e discos. Por exemplo, o director da editora Philips, que se tornou depois um grande amigo, trazia-me frequentemente gravações não só de música clássica, mas também de músicas do mundo, como a de Java.
Como era criar num regime que tentava impor directrizes aos compositores, sobretudo para alguém que dá tanta importância à componente espiritual da música?
Era um desespero. Muitas vezes os intérpretes estavam já com a obra na mão e preparados para a interpretar e saía a proibição. Todavia, por estranho que pareça, neste período sentia-se uma enorme vontade de trabalhar. Não havia passividade, mas muita produtividade. Era também uma forma de protesto.
Porque escolheu a Alemanha para se instalar quando deixou a Rússia em 1991?
A Rússia foi vencida na Guerra Fria. Em 1991 fez-se um balanço e a perda nessa guerra era algo equivalente à Alemanha ter perdido a II Guerra Mundial. A Alemanha ficou em ruínas depois de 1945 e a Rússia sofreu a mesma coisa, mas na Guerra Fria. Na década de 1990 a Rússia foi deixada à mercê de destruição e do saque e o nível moral desceu ao mais baixo. Mas não é essa a razão da minha saída. Mais importante foi a possibilidade de poder viver num ambiente de aldeia e não de uma grande cidade industrial. A vida nos grandes centros industriais levou a uma grande nostalgia da árvore que está ao lado. Recebi as mais importantes prendas para quem precisa de criar: o silêncio, a aproximação à natureza e a completa ausência de industrialização à volta. Será que não era possível atingir o mesmo na Rússia? Tentei várias vezes, mas a criminalidade era muito grande, não era uma opção segura. Vir para o Ocidente abriu-me horizontes e a possibilidade do encontro com intérpretes. Permitiu-me outra orientação no mundo, aceitar convites, viver a minha obra interpretada e depois voltar ao silêncio de casa.
A sua paixão por Bach e Webern é bem conhecida, assim como por experiências musicais que vêm de outras culturas. Mas quais são as tendências musicais de que não gosta ou que recusa?
Em geral o mundo da música ligeira, pois esta tornou-se muito agressiva. Quando me encontro num ambiente de relaxamento e surge música pop, sinto-me mal fisicamente, nem sei explicar bem porquê. Gosto de algumas obras de Piazolla, que Gidon Kremer interpreta muito bem, mas quando vou aos seus concertos dedicados a este compositor sinto-me alegre a ouvir a primeira peça, calma na segunda e a partir da terceira a vida começa a ficar mal... E estamos a falar de boa música ligeira. É precisamente a música ligeira que domina os hábitos musicais da maior parte da população, a música erudita é ouvida por um grupo restrito e a música contemporânea por um subgrupo ainda mais restrito.
Como vê esta situação?
Há dois pólos de compreensão humana que são a concentração e a desconcentração e que guiam não só o mundo artístico, mas também a sociedade em geral. A tendência da desconcentração é cada vez mais financiada e isso é perigoso. O ser humano está a perder cada vez mais união com algo de mais absoluto, com a sua essência. É importante apoiar a tendência para a concentração em algo de mais profundo, nomeadamente na música e arte. Há que salvaguardar a capacidade de concentração do ser humano, mas será que isso ainda é possível na sociedade contemporânea? Na minha opinião é algo talvez mais importante do que toda a vida económica, mas na verdade grande parte das pessoas não sente que precisa disso, não se quer concentrar, não sente necessidade de algo mais.
Esse algo mais tem a ver com a espiritualidade, com a religião, tão importante na sua obra?
A minha perspectiva da religião tem a ver com "re-ligio" (no sentido de religar), é a reunião de um laço, a recomposição da integridade espiritual através da música. O ouvinte que se concentra nessa experiência encontrará também esse elo. Mesmo no caso de um compositor não crente, quando ele sente a necessidade de compor uma forma e toma em consideração esse acto de religar, está a aproximar-se de um critério de espiritualidade, quer o reconheça ou não.
Ao contrário de outros compositores que usam formas originárias do ritual religioso como a Missa, a Paixão, as Vésperas, etc., no seu caso essas referências são incorporadas em composições livres...
Uso as referências aos rituais como metáforas. O que tento fazer é reconstituir o impulso para a sensação religiosa, como por exemplo no Concerto para Violino Offertorium. Não preciso da integração concreta, o que é importante não é a tradição, mas sim o impulso donde partiu essa tradição.
Costuma dar aulas de composição? Como vê a transmissão do acto da criação artística?
Só dei aulas uma vez. Era um menino de 12 anos, a mãe pediu-me para lhe dar orientação para ser compositor. O menino queria criar e ofereceu-me muitas descobertas e partilhas. Quando andava pela rua, ouvia tudo como sons, mas logo que chegava a casa fechava a porta e tudo acabava. Pedia-lhe para escrever o que estava a ouvir, mas o resultado não era interessante. Descobriu-se gradualmente que o talento que tinha não era suficiente para guardar aquilo que ouvia e conseguir pô-lo no papel. Fiquei com muita pena deste rapaz, não insisti que continuasse como compositor, disse-lhe que seria mais proveitoso para ele seguir uma carreira de intérprete. A partir daí sempre recusei propostas para ensinar.
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