Capitalismo selvagem

Acabei de saber - e de tal forma fiquei incrédulo que tive necessidade de confirmar com alguém envolvido na questão - que o Casino do Estoril e o Casino Lisboa reduziram o cachet dos músicos que aí actuam em …50%.
De 100 euros por músico em cada noite o dito cachet passa para 50 euros.
Esta é uma situação humilhante, degradante e prepotente por parte dos Casinos, autênticas fontes de dinheiro e de lucro, lucro esse á custa do vício, muitas vezes da dependência, dos utilizadores de slot machines, roleta e afins.
Esta é uma medida desmoralizadora da classe, autêntica eutanásia de uma profissão sem rei nem roque, sem sindicato interveniente, sem união entre os seus membros, profissão em que o salve-se-quem-puder impera há demasiado tempo.
E não falo das estrelas, gente que – com valor ou sem ele – vende discos, faz espectáculos, é convidado para a Gala disto ou daquilo, tem o seu agente e durante um período, maior ou menor, ganha muito dinheiro e dá (algum) a ganhar.
Falo dos músicos, dos cantores que os acompanham, gente menos mediática mas nem por isso menos bons – muitas vezes bem pelo contrário. Gente com projectos na área da Pop, da música portuguesa, do Jazz, bandas de covers, cantores e cantoras que, sem a sorte ou o talento para ter o seu nome em letra maior, animam as noites de milhares de pessoas.
Como pode uma entidade como um Casino pagar 50 euros a um músico, e exigir-lhe que (por 50€, menos impostos ) represente condignamente a casa que o acolhe?
Há o material indispensável á práctica da profissão que é preciso comprar e manter. A guitarra, o amplificador, o saxofone ou a bateria, material cujo IVA é taxado com os mesmos 19% quer para o músico profissional quer para o miúdo que da banda de garagem ou para o pai de família que quer tocar “órgão” depois de jantar . É óptimo que o miúdo da garagem e o melómano doméstico possam tocar um instrumento mas essa situação deveria ser considerada bem diferente da do músico que estudou anos para o ser e que precisa de um instrumento para trabalhar e com isso pagar a conta da luz e o infantário dos miúdos (e o resto...)
Há a aprendizagem.
Quanto tempo passa desde as primeiras aulas do instrumento até ao primeiro convite para tocar profissionalmente? Quanto tempo até se construírem e estabelecerem as relações pessoais e profissionais, as empatias e cumplicidades até que se criem as condições para que alguém esteja disposto a pagar para nos ouvir? A prática musical é, está estudado, uma das que mais tempo de formação requer até ao desempenho profissional. O percurso até aí é cheio de obstáculos e muitas vezes, becos sem saída, nos quais é necessário dar meia volta e tentar novo percurso de aprendizagem.
Eu explico: um saxofonista, por exemplo, que no intuito de se tornar profissional, opte pela via de ensino tradicional (Conservatório, digamos) irá ter a maior das surpresas quando, em fim de curso, constatar não estar minimamente preparado para mergulhar no dia-a-dia da profissão como seja gravar em estúdio um gingle publicitário, integrar o naipe de sopros de um artista do momento ou fazer lead alto de uma big band de Jazz. Terá então que ir completar a sua formação algures ou professar desde então um auto-didatismo feroz que compense a falta de preparação causada pela irrealidade em que vivem os programas de instrumento nas escolas “sérias”. O facto de, talvez por ingenuidade, ter tentado a profissão ainda sem o necessário know-how, faz com o “millieu” saiba que ele “ainda não está preparado” o que atrasará, por seu lado, o estabelecimento de um network de relações e contactos. Há realmente um longo caminho a percorrer até ao primeiro cachet.
Voltando ao Casino, salvo seja.
Os senhores administradores dos Casinos do Estoril e de Lisboa impõem aos músicos uma situação de “Não quer? Venha outro”. Sabem que o podem fazer por detectaram a fragilidade da classe e o aperto (ainda maior) que a "crise" impõe a todos, músicos incluídos.

“Não quer? Venha outro”.
O problema é que … vem sempre outro. Ou porque são miúdos que se estão a iniciar na música e até pagavam para tocar num palco a sério, ou porque a família tem dinheiro e nem é preciso pensar quanto se vai receber (ou gastar...) para tocar num club com prestígio ou então porque as contas para pagar se vão acumulando, os músicos vão aceitando valores cada vez mais baixos e assim vão minando a estrutura de funcionamento de uma actividade que é a sua. Lembro-me que em meados dos anos 80 cada músico recebia 15 contos para tocar num bar ou num clube. Hoje o Casino paga 50€ a cada músico para o mesmo tipo de trabalho.
Não frequento casinos nem como cliente nem como músico. Não quero nem posso moralizar sobre quem deve aceitar o quê ou quanto. Cada um sabe de si e de quanta falta fazem 50€. Mas sinto que, mais do que uma medida de contenção económica, este corte financeiro, vindo de uma instituição como um Casino, constitui uma prepotência com a qual uma classe enfraquecida terá que lidar. Vou esperar para ver qual a atitude do (dizem que ainda existe…) Sindicato dos Músicos. Oxalá me engane mas, tendo em conta o seu passado de ausência e apatia, nenhuma.
Que mais vai ser preciso acontecer que os músicos discutam a sua situação e procurem, em conjunto, uma solução?

Comentários

Anónimo disse…
Muitas vezes é preciso pensar e os músicos não pensam muito... Não se pode exigir um Sindicato forte quando os músicos não o são. A questão é: O que é que eu posso fazer pelo Sindicato e não o que o Sindicato pode fazer por mim!
O Sindicato são os músicos.
psitrek disse…
Caro mardapalha,

Como pode você, dizer que os músicos não pensam? Olhe que eu sou musico e pode crer que penso e muito sobre pessoas que só admiram o que é feito fora deste pequeno rectângulo que é Portugal. Como pode nas suas palavras acima desvalorizar músicos como Alexandre Frazão, Carlos Bica, Zé Eduardo, Claus Nimark, os senhores Moreira, entre muitos outros que passam horas seguidas dentro de uma sala de aula a ensinar e a dar aos seus alunos material de trabalho, (que dá que pensar...)muitas vezes pelo gosto insaciável de TRABALHAR, ignorando os míseros euros que ganham.
As suas palavras tipifica o "TUgA" que nunca dá valor ao musico e se calhar sociedade portuguesa preferindo ouvir ou ver falar um artista com um nome estrangeiro que muitas vezes vêm para Portugal pensando que isto é Espanha.

Francisco Andrade
Enfim, eu penso enquadrar um daqueles casos que ao fim do curso tem que voltar atrás e "começar de novo" (não retirando o devido mérito a toda a aprendizagem feita). De facto, urge desmistificar a ideia de que o "músico" não pensa, ainda que muitos haja que sejam o espelho dessa imagem, mas a generalização incorre no erro, como é sabido, em quantas profissões encontramos quem não pense?

O sindicato não funciona? Parece que não. Mas também concordo que de facto o Sindicato são os músicos! Os actores, têm Sindicato? Não!

Penso que o problema aqui é de outra ordem, é cultural (social). O Júlio Resende contou-me no outro dia que um músico (não recordo quem) havia ido ao médico, e quando este lhe perguntou a profissão este respondeu: Músico! Admiração, abespinhou-se o homem, Mas vive disso? Vive do quê? Dos concertos, toco?. "Mas só?" Também dou aulas.."Ah, é docente!!!" E então lá tomou nota da profissão do rapaz...

Não serve isto para rechear o já longo anedotário, serve para reflectir, reflectir sobre uma classe profissional que não é levada a sério, cuja esmagadora maioria da população desconhece as longas horas de trabalho dispendido, sem férias, sem regalias, e tantas e tantas vezes tratados sem dignidade (assim o deixássemos)!

Não pensamos? "Tivesse eu a tua inconsciência e a consciência disso", dizia o Pessoa...de facto, antes não pensássemos.

Filipe Valentim